/> Πρωτεύς: 2009

29 de dezembro de 2009

O avesso

"Um creux toujours futur" (Valéry)
Aquém do riacho onde as sombras
Purificam-se do que foi existência
Resta a palavra e, através da palavra,
O verso... avesso de sentido:
Desejo do que não houve ainda na infância,
Reunidas as mãos sobre a cama,
Olhos a penetrar nos olhos,
Pernas encruzilhadas...
Foi quando em teu ouvido
Derramei demônios;
Foi quando desmanchou-se a torre,
Farsa metálica-translúcida da verdade,
Na confusão da palavra úmida.
É o silencio do sineiro, porém,
O que não houve ainda,
O que não se ouve dos dentes,
O que não verte do passado, mas
De um cântaro sempre-depois.

27 de dezembro de 2009

Ocaso


Quando fogem os inertes,
Apagam-se as naturezas mortas,
O vivente já se foi ao longe,
O galho epiléptico, o pássaro negro:
Já não há o que deixar, ausente.

26 de dezembro de 2009

Ainda esfinge, ainda enigma, mas...

Braços, seios, dorso...
O enigma encarna
E a carne, deleitosa aos olhos,
Adensa o mistério do corpo.
Há distância...
Ao dorso escapa a mão
Quando a proximidade do dígito
Nos reune. Ainda longe, porém,
A fisionomia da esfinge (re)vela
A crescente comunhão do espírito.
Ainda criança, a alva flor brota
Do canteiro, recurvo-labirinto.

24 de dezembro de 2009

"Tu dizias...

Ao mortal que perece: pereça! Não dirás.
Como a mesma palavra é a mesma
E mesmas são as coisas ditas depois?
Tu não dirás à pedra: és pedra!
Não dirá ela consigo: isto sou!

Violet

Sangue, suor e lágrimas:
O vinho das sensações se derrama por inteiro.
É a tempestade que se avizinha,
Desejo cego de carne,
De fragmentos de carne por fragmentos de palavras.
Um nome ainda é um nome - e só;
Um rosto ainda é um rosto - e só.
Pode o desejo contornar essas farsas?
Quando, devagar, se desvela
A violeta-flor do enigma,
É a fisionomia lásciva dos lábios
Que as palavras reclamam.

23 de dezembro de 2009

Esfinge

Quando teus pés sob o vinho derramam,
Quando desatam as feras-sílabas de Circe,
Quando, recurvas, as colunas desaparecem
Em teu corpo (des)aparecido.
Violeta, Esfinge-enigma,
Esfinge-enigma de Tebas,
Mas Tebas mora no indizível.
Esfinge,
Enigma (des)manchado
Em vinho, em verso demora
Áfona. “Eu”, porém, farsa
Devore. Que sedento de lábios,
Embora tenha noites vista-aninhadas,
Farpas sobre peito adentro,
Não me escaparei dos dentes.

22 de dezembro de 2009

Ao fundo


Ao fundo,
Enegrecido pântano,
Caranguejam causas cegas
Sobre amanhãs (de)compostas:
O semeador faminto, entanto,
Caminha entre farpas podres,
Metálicas — galhos epilépticos.
Escreve porque ainda não é a morte.
Dia virá coberto
E também “eu”
De silêncio.

20 de dezembro de 2009

Labor

Com outros olhos talvez fosse verdes os canteiros,
E os pinhos agigantados muro ao longo;
Acastanhados, os troncos que se dobram ao sol.
Fossem de cor, porém, freqüência de onda
Ou súbita admiração poética,
Ficavam ali indiscernidos
O pavilhão de seus muros, os muros do curral,
Limites da condição anômala de vitela
À espera do sangradouro:
Do machado, da faca, dos dentes... do estômago.

17 de dezembro de 2009

(des)enlaços V

(Re)findo
O jogo pueril do avesso
Ou o (Re)verso de (a)patia:
Haja pedra e gota d’água.
Aja! Haja (re)conto.
Onde o vocábulo e o invocabulável:
Haja des-encontro.

16 de dezembro de 2009

Desamanhecer

Já a noite consome a claridade da manhã,
O dia que mal desatou do sono:
É o avesso da torrente,
Entristecer do lago ao fundo.
Já a noite consome o claro
Não porém ao todo e de súbito,
Mas remanchando de sombra o móvel,
Reespalhando monotonia e inércia,
Apagando-me a cor dos olhos.

13 de dezembro de 2009

Peter Handke - Lied Vom Kindsein

                       
Als das Kind Kind war,
ging es mit hängenden Armen,
wollte der Bach sei ein Fluß,
der Fluß sei ein Strom,
und diese Pfütze das Meer.
Als das Kind Kind war,
wußte es nicht, daß es Kind war,
alles war ihm beseelt,
und alle Seelen waren eins.
Als das Kind Kind war,
hatte es von nichts eine Meinung,
hatte keine Gewohnheit,
saß oft im Schneidersitz,
lief aus dem Stand,
hatte einen Wirbel im Haar
und machte kein Gesicht beim fotografieren.
Als das Kind Kind war,
war es die Zeit der folgenden Fragen:
Warum bin ich ich und warum nicht du?
Warum bin ich hier und warum nicht dort?
Wann begann die Zeit und wo endet der Raum?
Ist das Leben unter der Sonne nicht bloß ein Traum?
Ist was ich sehe und höre und rieche
nicht bloß der Schein einer Welt vor der Welt?
Gibt es tatsächlich das Böse und Leute,
die wirklich die Bösen sind?
Wie kann es sein, daß ich, der ich bin,
bevor ich wurde, nicht war,
und daß einmal ich, der ich bin,
nicht mehr der ich bin, sein werde?
Als das Kind Kind war,
würgte es am Spinat, an den Erbsen, am Milchreis,
und am gedünsteten Blumenkohl.
und ißt jetzt das alles und nicht nur zur Not.
Als das Kind Kind war,
erwachte es einmal in einem fremden Bett
und jetzt immer wieder,
erschienen ihm viele Menschen schön
und jetzt nur noch im Glücksfall,
stellte es sich klar ein Paradies vor
und kann es jetzt höchstens ahnen,
konnte es sich Nichts nicht denken
und schaudert heute davor.
Als das Kind Kind war,
spielte es mit Begeisterung
und jetzt, so ganz bei der Sache wie damals, nur noch,
wenn diese Sache seine Arbeit ist.
Als das Kind Kind war,
genügten ihm als Nahrung Apfel, Brot,
und so ist es immer noch.
Als das Kind Kind war,
fielen ihm die Beeren wie nur Beeren in die Hand
und jetzt immer noch,
machten ihm die frischen Walnüsse eine rauhe Zunge
und jetzt immer noch,
hatte es auf jedem Berg
die Sehnsucht nach dem immer höheren Berg,
und in jeder Stadt
die Sehnsucht nach der noch größeren Stadt,
und das ist immer noch so,
griff im Wipfel eines Baums nach dem Kirschen in einemHochgefühl
wie auch heute noch,
eine Scheu vor jedem Fremden
und hat sie immer noch,
wartete es auf den ersten Schnee,
und wartet so immer noch.
Als das Kind Kind war,
warf es einen Stock als Lanze gegen den Baum,
und sie zittert da heute noch.

12 de dezembro de 2009

Silêncio e Voz

τότε γὰρ αὺτής πρω̃τον τη̃ς κυκλήσεως η̃̉ρχεν έπιμου̉μενος
ό̉λης ό θεὸς ὼς νύν κατὰ τόπους ταύτὸν τούτο ύπό θεω̃ν
α̉ρχόντων πάντη τά του̃ κόσμου μέρη διειλημμένα (Platão)

Atravessar desertos,
Areia entre os dedos, olhos enxutos.
A montanha feito colina, assim feita:
Sinal dos tempos, medida dos homens.

Há uma cabana deitada em séculos
Muito antes do viger dos olhos.
Quando lhe atravessa um raio de sol,
Víbora que pela fenda verte o claro,
É o aborrecimento da monotonia do pardo.

Há uma cabana abandonada, um lago triste.
Vive aí um bêbado vulgar em ruínas,
Cujas barbas encobrem um rosto marcado
E carcomas de versos lábios adentro.
Ele corre à noite nu, tropeçando em símiles,
Por sobre as lembranças que, já purgadas,
Escaparam dos olhos e da garganta muda.

Houve um tempo de quietude no mundo, Ariana;
O Céu dizia: “chega!”, a Terra: “basta!”.
Foi quando o orvalho se afastou do ramo,
E o ramo do leito arenoso, à despedida.
Foi quando deitou o bêbado sobre o pasto.
Houve, então, canções que não serão ouvidas.

10 de dezembro de 2009

Ad Profundis

Vasta o campo até onde margem os celestes.
Mas o navio, a terra e o mar são juntos da encosta.
Semitardam recurvos alí os troncos sob os mortos,
Sobre a corrente que alegra os pântanos.
Precípitos, os corpos negros se entornam ao sobro
E dobram... ao dobro, ali onde, do profundo,
Exala a sorte dos viventes.
Ainda há campos, nalguma parte —
E canteiros, talvez, e cântaros desfigurados
Mas nenhuma voz, nenhuma palavra.

9 de dezembro de 2009

8 de dezembro de 2009

Alguma poesia

Quando o céu anoitece claro,
(Re)vela as terras altas,
Eles, muitos deuses, florescem.
Pureza, porém,
Ter mãos limpas
E olhos claros,
É o (re)verso do esforço,
Do suor e da Terra. Mas,
Algum poeta cantarola
Alguma poesia rasteira.

7 de dezembro de 2009

Prelúdio de Luz e Sombras

Não há muitos destinos. Primeiro vieram os poetas dizer dos destinos humanos quais foram: Aquiles, Odisseu, Édipo — somente os que interessam aqui, aqueles em que é prevalente o jogo de luz e sombra no qual se desenha a fisionomia da face humana. Aquiles é o destino humano enquanto superação do homem, transfiguração precária da vitória dos imortais sobre o Tempo. Aquiles é um prolongamento do mundo dos deuses: filho de Tétis por um acordo entre Primeiro Criminoso e o senhor dos deuses, que a este livrou do infeliz casamento, sua ruína. O mundo dos homens começa aí, onde o mundo dos deuses, agora livre do fado parricida, termina. Quando Aquiles, recusando o aviso materno, parte para vingar em Heitor o sangue do amante, Zeus pesa a sorte dos heróis; quando, já sabendo, parte para morrer sob as flechas de Páris, mortais e imortais se encontram de pleno acordo.

5 de dezembro de 2009

(Des)enlaços IV

Como não fosse criança ainda
(des)desenhava o (re)trato
Do olhar conexo,
Marca-tempo es-face-lado,
Reflexo,
(Des)pedida.

4 de dezembro de 2009

Poética V

Είκώ δ̉έπενόει κιντόν τινα αίώνος ποιήνος
καί διακοσμών άμα ούρανος ποεϊ μενοντος
αίωνος έν ένί κατ΄ άριθμὸς ι̉οϋσαν αίώνιον
εικονα τούτον δή χρόνον ώνομάκαμεν. Platão

Por que as palavras não duram? Mesmos olhos e mesmas palavras se encontram somente uma vez, somente há um instante de puro gozo estético. Tudo que aqueles olhos puderem ver, verão nesse exato momento, nada lhes poderá ser acrescentado. Se a releitura se fizer imperiosa por razão de conveniência ou, pior, busca prefrustrada do prazer originário, a poesia mesma corre o risco de ser recoberta por opiniões e conceitos, no caso, igualmente alienadores do fenômeno estético. As palavras não duram em seu vigor próprio, porque o que vige desde o fundo de si mesmo não pode aparecer senão sob a mascara da natureza. Haverá, então, muita naturalidade no concatenar dos verbos e substâncias para que os olhos voltem a ad-mirá-los.

Parece que a ambivalência dessa physis despida do velho arcabouço das formas não se mostra tão sedutora, pois é justamente contra a natureza dos cometas que empenhamos nossas maiores formas. “Möch’t ich ein Komet seyn? Ich glaube. Denn sie haben/ Die Schnelligkeit der Vögel; sie bläuhen na Feuer/ Und sind wie Kinder an Reinheit.” — Esta mesma voz, porém, preferiu emudecer, descendo a abóboda como um cometa tão brilhante quanto prontamente arremessado às trevas. Mas este é o destino do cometa, porque o cometa tem a fisionomia do Dionísio, deus da alegria e das trevas. E de tantos quantos posso me lembrar, de tantos quantos foram os que assumiram essa natureza, mesmas foram também as trevas: loucura, silêncio e morte. Ficaríamos sob as barbas aprazíveis de Parmênedes, se pudéssemos. Ficaríamos sob o Sol, a venerá-lo, na clareira do mármore. Mas houve Heráclito...

3 de dezembro de 2009

(Des)enlaços II

Ligeiro o
Leão.
Não fosse passo
Canoro, mesmo
Ligeiro o
Braço... (des)afago,
Éramos já...
Entredentes.

2 de dezembro de 2009

Jocasta

A pureza não tem palavra,
Não... áfona pantomima.
Ditas, as palavras,
Mancham-se na boca,
O gesto enrijece.
Ter olhos como o céu esclarecido
É trazer consigo também o viso da terra,
Os frutos que não se perderam na tempestade.
Mas sob teus olhos
Entreabrem lábios,
Desenha-se o sorriso:
Parece-me contrair o peito.
Creio ter olhos, vê-lo desenhar
O contorno de uma moradia;
Creio ter mãos
E braços e um corpo encarnado:
Creio como nunca mais voltei,
Mesmo sob a terra em guarda.
Porque ter olhos...
Ter mãos e braços,
Encarnar um corpo e apodrecer
São virtudes humanas.

29 de novembro de 2009

(Des)enlaços

Alva-manhã epiderme de sob o vestido,
De sob o negro vestido, vertida:
Vigas-coxas do altar de Vênus.

27 de novembro de 2009

Onde os olhos

Onde os olhos desaparecem através do reflexo
Há um lugar de canções que penetram o silêncio,
Sombras que se confundem com a escuridão,
Pouco aquém da clareira do caçador exausto.
Quando a sala vazia, quando a mesa de jantar vazia,
Houve também um lugar de canções deslembradas —
Em cachos pendentes de vinho e campo-de-arroz:
Quando éramos um e outro, na reunião dos olhos,
Mais humanos que o mais tolo dos homens.
Se ainda os olhos outra vez aqui defrontam,
Porém, é um fosso de deserto em fonte
De tanta alva-terra quanto tempo houve.

26 de novembro de 2009

Nosotros I

Enfim...
Estar sujo de si mesmo,
Todo coberto de si e repugnante,
Com ossos cobertos de aranhas,
Amordaçado e faminto de matéria.
Sangrar horas...
Wether também sangrou por dias,
Mas, sombra de sombra e pólvora,
Por palavras, sonho diurno, símile Órfico,
Enfim... engodo!
Senão a contraface do velho fausto.
Ter lençóis, porém, manchados de culpa
E a fisionomia a desenhar o espaço,
Já é tornar-se próximo contigo na dor.
Bem sei: melhor tornar-se escravo
Do mais mísero dos míseros Senhores
Que na penumbra ficar aquém do orvalho.
Mas a leveza do corpo sobre teu corpo
Mas o esquecimento rarefeito
Em vazio extensivo e voz deserta,
Membrana Etérea de querer e quimera,
Deixou outro cálice entre meus dedos.
Sim! Já o acontecer da superfície deflexa
Da espessura inalcançável, epidérmica...
A eclosão entremeada de vestidos:
Branca pele, insinuante entre o pudor e riso,
Pudica como os olhos sadopudicos de Senhora,
Imperativa em tua moral homérica,
Em tua crueldade categórica.
Haja vândalo e bárbaro o anseio desta carne
Que te percorre o rosto no tocar fraterno,
Que te circunda a pele e a recusa estrábica
Do cálice de teu ventre sob o veludo negro:
Diabólica orquídea recôndito-defesa.

24 de novembro de 2009

A(patia)

Sinto! Mas sinto menos agora.
A noite não tão escura.
Manhãs e tardes nubladas vêm
De quando fui,
Do quanto fui quando brincava.
Há menos olhos em teus olhos,
Há em ti o que não me lembro.
Alguém derramou cinza sobre o asfalto,
Cobriu, acinzentado, os muros
E lavou os signos.
Ou foram meu olhos que acinzentaram?
Sinto tanto!
Sinto-me aqui tanto menos:
Tanto menos há.

23 de novembro de 2009

...

Um dia silenciaremos junto à corrente
Lá onde o fôlego envolve a tempestade.
Porque as fisionomias que os cantos rondam
Sob o lúcido aspecto das palavras íngremes
Podem confundir-se à sombra — e a sombra
Envolver os traços ingênuos do mais nítido.
É que a noite envolve as estrelas cadentes:
São como órfãos de mundos acolhidos.
E se correm lágrimas sobre a face do céu
Também aí haverá algum vestígio de existências.
A lembrança é, creio, uma fisionomia da vida,
Mas desgarrada como a imagem do sino ao longe.
Se quando fecho os olhos e a pureza do silêncio
Esquece-me dos predicados noturnos do sonho,
Julgo também ser entre as coisas acabadas.
Longe vai extinguir-se a imagem do sino
Longe vai... mas extinguir-se.
Como qualquer coisa dura... ainda dura...
Fossem as coisas a imagem de seu destino,
Fosse o destino fisionomia das coisas.

22 de novembro de 2009

... entre os mortos

Agora que da estrada o dorso
Maior horizonte avista,
Que da esteira do pó
Perdeu-se a fileira dos passos...
Extinguir-se.
Perecer e alçar renúncias:
Não como a fonte-musa
Que vez recusou transbordar
Mas riacho, aedo, viajante:
Da nascente perdido um dia,
É um curso vazio, imóvel,
Onde escorrem serpentes,
E de onde saltam aranhas e insetos.

Tal como extinguir-se
É perecer o leito e a margem,
Perder-se da queda,
Avolumar-se em lago
Cada vez mais raso.

Simplesmente, assim, a torrente,
Voz, volúpia e vaguear,
Desaparece — e desparecendo morte
Esquelética, enxadrista ou amante:
Simplesmente não estar
Entre coisas que já não estão.
Morrer, esconder-se ao claro;
Envelhecer, acostumar-se a morrer.

20 de novembro de 2009

PROTEUS

                                                     I

Na mitologia grega: Proteus, filho do Oceano e de Tétis (ou de Fênice e Netuno segundo outra versão), deus marinho capaz de mudar sua própria forma.

Nosotros II

Intellectus luminis sicci non est recipit 
infusionem a voluntate et affectibus (Bacon)
                                      II

Mas desenha
A distância teu corpo distante,
O vazio... o vazioespaço de corpo.
O recurvo-gigante, celeste pilastra,
Flerta um vão marinho
Da altura dos ombros...
Porsobre os gêmeos montes
Ao delta de Vênus (re)coberto.
Aquém do turbilhão que te transforma
Em coisa como gente, à sombra outra afigurada,
Quedo-me ereto qual forma também outra,
Forjando olhos sobre tua pele que aflora
Sob o lascivo lúmen do volúvel viso.
Se à carne fere o gume-fluido da penumbra,
A textura que pouco, e pouco, desmancha
Entre nossas línguas e meus dentes reclama:
“Corte e sirva esta carne à boca lasciva,
Deixa escorrer licorosos lábios. Sim,
É o desejo... é o desejo e a boca vazia,
Emudecer no avizinhar das coxas,
Bel-prazer no ebulir do vértice.”
Mas não! Não penetras-me entanto
A garganta: ave, ávida, ássona.
Quando a fúria adensa o corpo rarefeito
Em figura de corpo entre tantos corpos —
Cada parte do corpo como coisas outras,
Digo “eu” enfim como voz átona pordentro
E para cada parte tua forjo um nome
Pra chamá-las de volta ao perto,
Pra gozar tua carne entre verbos
Com lascívia estranha e métrica. Mas estranhos,
Mais estranhos nos tornamos um para o outro.

19 de novembro de 2009

Barret


 
Boa parte de nossa retidão mental se apóia no processo de conversão de quantidades contínuas em discretas. Nisso empenhamos todo tipo de sortilégio e metáfora: falamos de horas, dias e anos como se a assimilação a ciclos e razões numéricas nos apresentasse a duração — não só acreditamos mensurar o tempo, como, sobretudo, acreditamos no tempo mensurado. O mesmo ocorre com o espaço e a extensão dos corpos — o próprio fato de haver corpos. Nunca temos diante dos olhos o devir-puro, o puro caos da physis. Como disse Nietzsche: “Somos nós apenas que criamos as causas, a sucessão, a reciprocidade, a relatividade, a coação, o número, a lei, a liberdade, o motivo, a finalidade; e ao introduzir e entremesclar nas coisas esse mundo de signos, como algo ‘em si’, agimos como sempre fizemos, ou seja, mitologicamente” (JGB, § 21)
Qual o problema? É que junto a nossa propensão histórica para mentiras bem contadas, surgiu a estranha tendência de desfazê-las, de caminhar em direção a verdade que velamos, e precisamos velar, de nós mesmos. Cada passo nesta direção, porém, sempre nos parecerá um misto de revelação e de loucura.

                            (...)

Entendi”  — foi o que Barret disse a Waters depois de tocarem pela sexta vez o “refrão”. A historia poderia se perder entre as muitas excentricidades que conduziram Barret de volta a Cambridge não fosse o fato de que o experimento improvisado ultrapassa em significação toda a música experimental do Pink Floyd e mesmo dos álbuns solos do compositor original da banda. Narrada por Waters ela aparece assim:
“Houve um dia em que juntamos a banda e nos sentamos para tentar criar algumas músicas. Eu não me esqueço do dia em que ele veio para o ensaio, e perguntou o que estávamos fazendo. Estávamos compondo uma nova música. Ele disse: ‘Ótimo, como esta indo?’ Se sentou perto, pegou a guitarra. Era assim... Ele disse que ensinaria o refrão. Eu disse: ‘Ok, entendi’ Então eu disse pra tocarmos juntos. E ele tocou um pouquinho diferente. Sempre um pouco diferente. Sempre mudando.  Na sexta vez que tocamos... Ele disse: ‘Entendi!’. E largou a guitarra.”

Haverá quem prefira ver neste incidente outra marca da “loucura” que se apossou do jovem gênio musical pop por virtude dos alteradores de consciência das quais abusava. É uma explicação tão boa e reconfortante, ou seja, cognitivamente letárgica, quanto foi a sífilis para Nietzsche. O contrário seria uma explicação mística que envolve o próprio conceito de loucura como uma experiência fundamental e extraordinária, na qual alguma verdade mais profunda que as razoáveis poderia florescer. Senso comum e idealismo à parte, o incidente do “refrão” revela o teor da criatividade de Barret e ao mesmo tempo uma disposição evidente da arte moderna: seu heraclitismo.

                                              (...)

Seria pouco dizer que “o refrão” não poderia ser tocado outra vez. Ele nem mesmo poderia ser ouvido, se no ouvir entendemos o mínimo de apreciação estética ou interação cognitiva. Como chamar de refrão o que nega duas vezes o caráter da recorrência? Ainda assim, o refrâo de Barret era o refrão de uma canção que ainda não tinha sido composta e que jamais seria.

                                                (...)

O “refrão indefinido” de Barret espelha 4'33 de John Cage: os dois experimentos estão em relação como imagens invertidas e pólos eqüidistantes ao que se compreende razoavelmente como “música”. Isso é evidente pelo fato de que a peça de Cage, inicialmente composta para piano, mas que por óbvio pode ser tocada em qualquer instrumento, se produz por uma recusa de si mesma: a expectativa frustrada da matéria musical deixa produzir-se a música a partir dos ruídos do teatro e da platéia. O “refrão” de Barret, por outro lado, insistindo indefinidamente na composição recusa o fenômeno estético por meio do prolongamento potencialmente infinito de sua matéria. De um pólo a outro, a “música” recusa o “fenômeno musical”.

18 de novembro de 2009

Infertilidade

Primavera após inverno
Aquieto (...)

Estrela rubra (...)
Flor-de-papoula (...)

(...)

17 de novembro de 2009

Nada deixar

Envelhecer é morrer ao claro;
Morrer, acostumar-se a morrer.

Quando nascemos, já o mundo pronto e acabado, já cidades, ruas, praças e humanos — tudo, de repente: o monólito que nos envolve e de que somos parte, porém somente como fresta ou imperfeição casual. Ano após ano, escavando e esculpindo: finalmente uma existência. Demoramos, porém, a perceber que o fluxo ininterrupto que nos fendeu rocha adentro e, com o qual, retendo em poça, desviando ou deixando correr, arquitetamos nossa caverna é o mesmo que a liquefaz e transmuta para novas fisionomias.

                                               (...)

Vinha descendo a ladeira a meio-passo do meio-fio e ela, sentido oposto, percorrendo os muros e portões. Nos cruzamos frente ao portão aberto à sua esquerda. Voltei os olhos e, já tendo-a visto de ao longe, vi seu corpo contra o fundo do salão de beleza Versátil. Ela não: nem ao templo de vaidade nem aos meus olhos vieram se encontrar os seus, mas permaneceram rijos, declinados sobre a ladeira que lhe custava.

                                               (...)

Fim de avenida cheguei a tempo ainda em folga, longe, porém, do centro-urbano. Perdido entre pensamentos corriqueiros e ninharias solenes, veio-me um verso. “bom verso!”. Paráfrase de Rilke, a dizer bem a verdade, mas, ainda assim, um bom verso. Abri a bolsa que entreaberta permaneceu de pressas, descobrindo qualquer papel e a caneta do bolso lateral.

— Se você deixa a bolsa assim... assim aberta, vem moleque e puxa e... levam tudo mesmo.— E a velhinha assim dizendo parou sorrindo, semigesticulando.

— É... nem percebi. Fico distraído e... muito obrigado pra senhora.

Segui em frente, sentido reverso, pela avenida.

Sobre a colina

Porsobre o desfiladeiro,
O denegrido pinho desce
A escarpa até o fosso,
Até o silêncio do Reino:
O camponês morto sobre o arado,
Pende a raiz de sua boca recurva;
Mãe e filho velando a colheita.

Quando a espada cai sobre a colina sombria,
O estandarte sobre a colina sombria,
Outras sombras há entre a fuligem e telha,
Portas e janelas barbarabertas do refúgio.
À tarde, a guarda-espera,
Olhos até o desfiladeiro.

(Re)encontros

Levantamos a mão e partimos —
acinzentado mirante sobre manhã deserta —
Cada um para o outro Leste.
Mas a circunesférica rota
De todos os navegáveis
Reúne os portos.

16 de novembro de 2009

“Então ...

                                                                 Vanitas vanitatum homo

Há Céu sobre as torres
Semirruinadas. Há...
Terra e desterrados. Mas
Nem deuses, nem humanos.

Silêncio entre badalos faz.
Porém, pálido dorso,
Sobre o sobrepodre patíbulo,
De fera-deus voante, caído.
Quando’a gota de lamporvalho
Similava o Tempo...

Pedra-lastro eras
De eras, sob heras:
Homens virão dobrar seus dedos:
Hecatombes; através da noite ver,
Dobrados joelhos até marmóreos,
Silenciar tua nascente, madraurora.

13 de novembro de 2009

Para Ariane

O dia atravessa ruas e praças:
Somos juntos o declínio do aroma,
Vestígio de ombro e madrugada.


Não somente amiga, sei:
Jamais olhos puros de amiga,
Jamais um sorriso fraterno,
Inveja, compaixão, louvor.
Não me dobrarás os joelhos, sei.

Nem quereria se algo quisesse
Que não fosse volúpia e desrazão.
Não me terás mãos limpas, puras, de uma amiga,
E sobre elas não liquefarei-me.

Mas teus olhos, sorriso e mãos
Estarão sempre manchados de tempestade.

Se um instante reconcilia os lábios,
Nenhum passado aflora combalido.
Ergue, porém, o que não se reconhece passado,
O que não cessa de trespassar a carne.

11 de novembro de 2009

Ant'édipo


Quem trespassou a Sina,
Silencionoturnosa flama,

Por fileiras de sombras já caídas
Ora por jonas colunas de treva

Assistir, satúrnio, deve
Tornar-se outro e Outro.

Feito o céu desdito noutra forma:
Que nem deus nem fera.