DER HIMMEL UBER BERLIN
1. Introdução
Der Himmel é uma narrativa em quatro cantos ou momentos bem definidos e conduzidos pela escrita de Damiel. Ali está a mão, a caneta e o papel; mão e voz traçam juntos os primeiros versos: “Als das Kind Kind war...”. A mão desaparecerá em pouco e deixará que a voz conte, em quatro rapsódias, a conquista de si mesma, a humanidade alcançada por seu portador. O primeiro verso que se repete no poema-diário de Damiel desafia tanto quanto impõe a necessidade de uma compreensão autêntica da qual depende em grande parte a própria compreensão da narrativa: “Quando a criança criança era”. Quanto à poesia não devemos recusar a sedução da primeira imagem, como segundo Bachelard deve ocorrer para que haja ciência. Ao reverso, é a primeira impressão, melhor seria dizer primeiro símile imagético, o guia hermenêutico adequado para distender a per-feição do ato poético. Logo, ao centro do verso, a palavra “Kind” remetendo a si mesma na reduplicação da substância e do atributo circunscreve a dimensão poética da narrativa, deixando já escapar a inocência homérica com a qual a estória de Damiel coloca em questão o enigma da condição humana. Experimentemos três paralelismos:
1°. Quando a criança (a mulher) criança era (menina)
2°. Quando a criança (o homem) criança era (infante)
3°. Quando a criança (o humano) criança era (novo)
O primeiro paralelo justifica-se por uma correlação fundamental do mito entre a conquista da humanidade e a conquista do Desejo — daí o título inglês Wings of Desire —, entre o tornar-se Homem e o tornar-se homem. O segundo parece mera generalização do primeiro, porém endossa a correspondência mencionada. Finalmente tem-se o paralelo humano-criança que marca a distância entre mortais e imortais nos dois primeiros momentos da narrativa.
EL SECRETO DE SUS OJOS
Otelo é a tragédia da paixão, mas não é uma estória simples como muitos pensam e, principalmente, não é uma mera estorieda de ciúmes. Otelo coloca em questão um modo de amar a que se chama “paixão” — sofrimento de..., sofrimento por..., sofrimento para... — tão complexo sentimento quanto o próprio amor. Vê-se bem que são três modos distintos de um afeto (paixão) e, este mesmo, um tipo particular do que se pode chamar, para evitar ambiguidades homonímia, um “sentimento” (amor).Benjamim Espósito (Ricardo Darín), Ricardo Morales (Pablo Rago) e Isidoro Goméz (Javier Godinho) são, em El secreto de sus Ojos, três dimensões desse afeto, três máscaras de Otelo.
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El secreto de sus Ojos, filme argentino vencedor do Oscar 2010, traz um enredo que oscila entre a narrativa policial e o drama shakespereano. É a estória de um policial que, por razões só lentamente se revelam na trama, resolve escrever um romance baseado no “caso Morales”, a investigação sobre o estupro e assassinato de uma jovem professora.
Os olhos são o espaço desse encontro: olhar de Espósito que ele reconhece em Gómez; olhar de Gómez que o denuncia a Hastings (Soledad Villamil); olhar de Morales que renega suas palavras. O olhar é sempre aí uma confissão, a confissão de um sofrimento, que não chega às palavras: palavras da convadia de Espósito, da brutalidade de Gómez, do destemor de Morales. Enquanto as palavras sempre tardam a sustentar a verdade, os olhos já a mostram desde o princípio — são “as janelas da alma”, donde se vislubra a luz do amor puro ou as trevas do sofrimento mais extremo. Se nos perguntarmos agora o porquê das atitudes tão díspares dos personagens — brutalidade, covardia e destemor — encontramos a mesma raíz: é o que se chama “paixão”. Este “fio de Ariana” só pode ser vislumbrado claramente porque um quarto personagem, assumindo-o, se faz elo entre os outros três: é Pablo Sandoval (Guillermo Francella), parceiro de Espósito.
Disse que o sofrimento que a paixão envolve é “sofrimento de...”; este se manifesta ora como “sofrimento por...” ora como “sofrimento para...”, ora puramente. Sua forma pura, a mais rara, é de todas a menos suportável. É o sofrimento de Morales quando a memória o confunde e, contra a sua vontade, começa a esvanecer-se a concretude de seu amor; é o sofrimento do nada, de “uma vida cheia de nada”, na expressão de Espósito. À sua questão: “como viver uma vida cheia de nada?”, a resposta é clara e é o que o permite sobrepujar a mentira de Morales: não se pode, isso não é possível. Uma forma de sofrimento deve transforma-se em outra; o “sofrimento para...” em “sofrimento por...”; o “sofrimento de...”, puro e vazio, preenchido com uma dessas formas. Este câmbio é a chave da economia do drama, é o que torna possível a sobrevivência e o reencontro dos três personagens.Para compreender isso precisamos atentar para o modo como a paixão se manifesta de início nos três personagens e em que se transforma:
Gómez ama Liliana Coloto (Carla Quevedo); ama-a desde a infância; ama-a com admiração e devoção. Ele sofre por ela, por não a possuir ou não a possuir mais: seu amor é a princípio amor-tributo como o de Espósito por Irene. Mas o que ele precisa não é tanto possuí-la, mas destruir o objeto de sua paixão, o fundamento de seu sofrimento. O estrupro e assassínio têm, portanto, esse duplo significado: é a consumação brutal do amor e a destruição do objeto amado, a libertação do sofrimento. Se Gómez assassina brutalmente aquela que ama é porque não pode conviver com o sofrimento; é fraco demais, degenerado demais para suportar a dor da convivência com o objeto inalcançável de sua devoção.
