/> Πρωτεύς: outubro 2010

26 de outubro de 2010

Pedro Kilkerry

É o Silêncio...

É o silêncio, é o cigarro e a vela acesa.
Olha-me a estante em cada livro que olha. 
E a luz nalgum volume sobre a mesa...
Mas o sangue da luz em cada folha.

Não sei se é mesmo a minha mão que molha
A pena, ou mesmo o instinto que a tem presa. 
Penso um presente, num passado.  E enfolha
A natureza tua natureza.
Mas é um bulir das cousas... Comovido
Pego da pena, iludo-me que traço
A ilusão de um sentido e outro sentido.
Tão longe vai!
Tão longe se aveluda esse teu passo,
Asa que o ouvido anima...
E a câmara muda.  E a sala muda, muda...
Àfonamente rufa.  A asa da rima
Paira-me no ar.  Quedo-me como um Buda
Novo, um fantasma ao som que se aproxima.
Cresce-me a estante como quem sacuda
Um pesadelo de papéis acima...
.......................................................................................

E abro a janela. Ainda a lua esfia
últimas notas trêmulas... O dia
Tarde florescerá pela montanha.

E ó minha amada, o sentimento é cego...
Vês?  Colaboram na saudade a aranha,
Patas de um gato e as asas de um morcego.

***

É dos simbolistas brasileiros, aquele em cuja sintaxe complexa e vigorosa imagética melhor desenha o sentido da poética moderna em oposição à poética arcaica, Pedro Kilkerry, o quase esquecido nômade. Seja a morte, o espalhamento de sua obra ou o descaso que aos astros mais brilhantes condena a um rastro póstumo, a razão pela qual houve de ser necessário esperar até os Campos para que pudéssemos reencontrar a poesia de Kilkerry, já não há de pairar dúvida entre os que reconhecem a diferença entre o gênio inovador e o competente operário das vanguardas, que “maior de nossos simbolista” é, irrisório que sejam os títulos, a mínima declaração sobre Kilkerry. Não que a poética do “Dante Negro” deva ser relegada a segundo plano, mas que o resgate de Kilkerry altera consideravelmente a face do nosso desenvolvimento poético. E quão, hoje, nos parece inevitável – porque o gênio é exatamente o inevitável – sua obra! Quão incompreensível e empobrecido pareceria o percurso poético brasileiro sem essa poética fundadora e mantenedora de tudo o quanto merece ser chamado “poesia”. Porque, entre a plenitude de sentido do arcaico que hoje nos escapa e a necessidade de renovações constantes da forma, do jogo sintático em que a poesia toma a si como objeto, está a poética do encontro: do arcaico e do moderno; do sentido fenomênico e do “outro sentido”.
É o silêncio é das mais emblemáticas peças poéticas de Kilkerry, nela comparecendo todos os elementos que nos permitem conceber a posição singular do poeta no panteão de nossas letras. Para os que acreditam, como Heidegger e este próprio que escreve, na proeminência dos poetas em matéria ontológica, É o silêncio é obra das mais caras em nossa difícil língua, quer pela sintaxe que a marca com o signo indelével da vanguarda, quer pelo pulular de sentido que a finca no restrito espaço da arte fundamental, quer ainda pela melodiosa concatenação de tons e imagens que a torna não menos aprazível aos ouvidos que perturbadora à consciência.

É o silêncio, é o cigarro e a vela acesa”

Que dizer, prima facie, desse verso, dessa construção, senão que desafia a ordinária capacidade mental de realocação sintática em favor do mais simplório e persiste por fustigante enigma? O que perturba nessa construção é o verbo, o corriqueiro e buliçoso verbo “ser”. Somente a passear pelas trilhas que conduzem ao “lugar do ser”, desenha-se o aberto do sentido, que é do sentido e do “outro sentido” o descampado hábito.
O silencio, o cigarro, a vela acesa — diz o verso que são, i.e., que há silêncio, que há cigarro, que há a vela acesa. Ao dizer isso, o verbo nada atribui aos entes que predica, pois “existência não é um predicado válido”. D’outro modo, firma a presença do que está presente e a ausência do que está ausente – pois o silêncio é a ausência de tons e o cigarro é a espera do que não chegou –; não vige aqui a força plasmática da metáfora, pois nada diz o verso do que é que algo seja e á pergunta “o que é?” nada responde: é o lugar vazio da substância desenhado pelo arranjo livre dos predicativos. Ao dizer o que efetivamente diz, o verso arruína a função atributiva do verbo-cópula em favor da expressão eventual do verbo-ação – e ação-acontecimento. 

Olha-me a estante em cada livro que olha. 
E a luz nalgum volume sobre a mesa...
Mas o sangue da luz em cada folha.

O acontecimento é o das coisas, do espaço e do tempo, mas cujo sentido remete ao que está ausente da experiência. O acontecimento é acontecimento do sentido, então, aqui, acontecimento da ausência. Há um lugar vazio, o todo espaço vazio, donde a relação do eu-lírico com as coisas e das coisas com elas mesmas, retira seu vigor. A própria elipse, nevrura da sintaxe de Kilkerry, encontra nesse vazio a relação originária de poiesis: é por ele criado enquanto o cria, o produz para o poema; não o expressa, é verdade; a construção eliptíca é o que deixa vigorar o pulular de sentidos da objetidade. A luz sangra sobre cada folha de um volume sobre a mesa; faz, do que se espera da luz o contrário, mancha o que deveria clarear; não é lux, signo etéreo de revelação, mas lumen, substância misteriosa que derrama dos olhos ou das próprias cousas vige e alcança o olhar; o olhar, então, é o fluxo inconstante que desenha a presença do que se apresenta, que traz ao encontro a buliçosa estante; o fluído é sangue, seiva, é a natureza liquefeita do visado.

Não sei se é mesmo a minha mão que molha
A pena, ou mesmo o instinto que a tem presa,
Penso um presente, num passado. E enfolha
A natureza tua natureza...

A natureza do que está ausente faz florescer e crescer desde si mesma a natureza das coisas, de tudo o que cirncunda o eu-lírico. Este, não é nucleo soberano de sentido, mas visão turva que ao visado persegue e recolhe desde o lugar nebuloso do impensado. Se aqui o poeta descreve a gênese de sua escrita, o que ela revela é o indeterminado da criação: não é na consciência estética do poeta que o arranjo significativo dos versos hão de produzir seu sentido, mas é da sempre obscura ilusão do sentido que o poeta fala:

Mas é um bulir das cousas... Comovido
Pego da pena, iludo-me que traço
A ilusão de um sentido e outro sentido.

Tão longe vai!
Tão longe se aveluda esse teu passo,





14 de outubro de 2010

Imitatio Personae

Minhas certezas ficaram em nós que desatam,
Entre o corpo de uma quimera morta
E a imagem de uma esfinge desconhecida;
Neste canteiro, fincadas, que abandonei,
Crescendo raízes até o mais profundo.
Agora me vens e me dizes: “vens”;
Agora vens e me invades e me confundes
E nos confundimos um com o outro.
Terça parte de minha aceita: “é real”;
Terça parte recusa: “somente engano”;
Enfim, entende terça parte de mim:
“Que importa. Não perguntes, nada saibas;
Aceita porque tens dias que se esgotam,
Grisalhos sobre os olhos e desertos adentro.
Que importa a certeza quando tudo mais é incerto?
Queres a certeza da morte,
Mas a morte é certa por nada ser
E nada ser é virtude que te assombra.
Tudo mais, efêmero que seja ou que não seja,
Permanece os belos possíveis que se realizarão
— Ou que não se realizem e, inocentes, morram.”

“Nós” — filhos do acaso; “Nós”, efêmero entardecer.
Despertamos e duvidamos de nós mesmos;
Esfregamos os olhos e esquecemos os mundos
Que, ligeiros, convenceram-nos como quaisquer outros:
“Eram sonhos e nada mais” — E erramos
— E erramos por desertos e montanhas sem descanso.

13 de outubro de 2010

Oscar Wilde - The Ballad of Reading Goal ( II )


II


Six weeks the guardsman walked the yard,
In the suit of shabby gray:
His cricket cap was on his head,
And his step was light and gay,
But I never saw a man who looked
So wistfully at the day.

I never saw a man who looked
With such a wistful eye
Upon that little tent of blue
Which prisoners call the sky,
And at every wandering cloud that trailed
Its ravelled fleeces 'by.

He did not wring his hands, as do
Those witless men who dare
To try to rear the changeling Hope
In the cave of black Despair:
He only looked upon the sun,
And drank the morning air.

He did not wring his hands nor weep,
Nor did he peek or pine,
But he drank the air as though it held
Some healthful anodyne ;
With open mouth he drank the sun
As though it had been wine!

And I and all the souls in pain,
Who tramped the other ring,
Forgot if we ourselves had done
A great or little thing,
And watched with gaze of dull amaze
The man who had to swing.

For strange it was to see him pass
With a step so light and gay,
And strange it was to see him look
So wistfully at the day,
And strange it was to think that he
Had such a debt to pay.

***

The oak and elm have pleasant leaves
That in the spring-time shoot:
But grim to see is the gallows-tree,
With its adder-bitten root,
And, green or dry, a man must die
Before it bears its fruit!

The loftiest place is the seat of grace
For which all worldlings try :
But who would stand in hempen band
Upon a scaffold high,
And through a murderer's collar take
His last look at the sky?

It is sweet to dance to violins
When Love and Life are fair :
To dance to flutes, to dance to lutes
Is delicate and rare:
But it is not sweet with nimble feet
To dance upon the air!

So with curious eyes and sick surmise
We watched him day by day,
And wondered if each one of us
Would end the self-same way,
For none can tell to what red Hell
His sightless soul may stray.

At last the dead man walked no more
Amongst the Trial Men,
And I knew that he was standing up,
In the black dock's dreadful pen,
And that never would I see his face
For weal or woe again.

Like two doomed ships that pass in storm
We had crossed each other's way:
But we made no sign, we said no word,
We had no word to say ;
For we did not meet in the holy night,
But in the shameful day.

A prison wall was round us both,
Two outcast men we were :
The world had thrust us from its heart,
And God from out His care :
And the iron gin that waits for Sin
Had caught us in its snare.

(Wilde, 1898)

*****

Sobre a Balada de Wilde

II

But I never saw a man who looked.”
So wistfully at the day

Por isso a Balada de Wilde não é uma ode ao sofrimento. O condenado, mesmo sob todo suplício descrito nos últimos estrofes da primeira parte, não se entrega ao desespero, nem ergue uma enganosa esperança. De algum modo ele superou seu sofrimento, e o enigma dessa superação constitui o principal mote da peça poética.


"For strange it was to see him pass
With a step so light and gay,
And strange it was to see him look
So wistfully at the day,
And strange it was to think that he
Had such a debt to pay

Nietzsche disse certa vez, e não sem razão, que o cárcere não é o lugar dos conscienciosos, que o aprisionamento não é capaz de infundir no homem a consciência da culpa, mas resulta “numa intensificação da prudência, num alargamento da memória, numa vontade de passar a agir de maneira mais cauta, desconfiada e sigilosa, na percepção de ser demasiado fraco para muitas coisas, numa melhoria da faculdade de julgar a si próprio”. Isso se aplica com certeza ao próprio Wilde, cuja encíclica De profundis, nada tem de um embate moral sobre a culpa, o pecado e a responsabilidade do castigo, mas é antes de tudo uma revolta contra  a imprudência de Lorde Douglas e a sua própria, na medida em que se deixou levar por aquele para um duelo que não poderia vencer. Wilde, o desafiador da sociedade vitoriana, conceberá em seu aprisionamento, como o destemor é punido, mas não lançará a sombra da má-consciência sobre os próprios atos e, para a surpresa de muitos, nem sobre os atos de Lorde Douglas, a quem chama para junto de si no mesmo ano em que escreve a Balada.

Mas nada disso aparece na peça poética. O real desenvolvimento dos sentimentos humanos é substituida pela construção de um mundo a parte no qual os aspectos da condição humana podem ser vislumbrados em figuras cuja vida foi totalmente inventada e, por isso mesmo, transparecem de modo mais claro e vigoroso. Este sentido da obra de arte, pelo qual Wilde elogia Balzac e critica Zola e outros realistas, resume-se nesta sua radical declaração: “Uma leitura constante de Balzac converte nossos amigos vivos em sombras e nossos conhecidos em sombras de sombras”.

Do mesmo modo, o personagem da Balada goza de uma vida férvida, um vigor inexplicável que o eleva acima de sua condição. O sofrimento é dele transferido para o expectador, daí o fato emblemático que sua experiência é narrada de fora, da perspectiva dos outros condenados que o assistem e mediam o acesso do leitor a essa figura.

A arte nada tem a ver com a vida nesse sentido, mas encerra-se no mundo particular que cria: não um mundo geral de toda a arte, mas cada novo mundo que as grandes obras desenham, como para Heráclito é o sonho de cada homem em contraponto à vigília. Ela não segue os princípios lógicos, nem se importa com a contradição; o espírito de seus personagens animados tem a mesma matéria que seus corpos, “a mesma matéria de que são feitos os sonhos” e não se deixam levar pelas leis naturais que governam a ação humana. Como os deuses de Homero, cada Quixote que a literatura traz a existência ex nihilo, compartilha com os viventes algo de humano, mas de tal modo exagerado e isolado ou associado a aspectos inconciliáveis que cada vida ficcional se converte num experimento mental similar aqueles tão ao gosto de nossos atuais cientistas da natureza – a ciência hoje assim, também, revela seu caráter poético, mas de tal modo envergonhado que muitos anos ainda serão necessários para que nossos sábios físicos compreendam que, no extremo, dividem o panteão dos poetas.

***

Os conceitos estéticos, ente eles o conceito fundamental do belo, não são algo de pré-existente, mas como fins com os quais os sentidos desenham o significado da experiência sensível, materialmente considerada, são vazios de princípio e somente se preenchem na própria experiência. A experiência determina o belo e o feio, o sublime e o grotesco, não segundo a natureza das próprias coisas, mas segundo sua participação nela: a natureza é a experiência da natureza, e o que é belo na experiência do belo não o será na experiência do horrendo, o que é vida na primavera da vida será o seu oposto no inverno.


"The oak and elm have pleasant leaves
That in the spring-time shoot:
But grim to see is the gallows-tree,
With its adder-bitten root,
And, green or dry, a man must die
Before it bears its fruit!"

E, contudo, aqui a experiência que distingue o belo e o horrendo, é, como ex-peri-ência, algo de profundamente diverso da natureza de seu objeto. A arte também tem seu limite arraigado no limite da experiência humana, coisa que faz toda memória póstuma não mais que uma pantomima de pouco interesse. Poucos grandes artistas ousam narrar a vivência extrema ou quando o fazem, seu propósito fantasioso é tão bem explicitado, que o risco dos lugares comuns é afastado pela revelação do propósito caricatural das crendices ordinárias. Mesmo as Memórias Póstumas de Machado, excluem a experiência da morte: ali a morte não tem qualquer significado relevante senão como lugar donde a vida pode ser avaliada em seu todo, seguindo-se a máxima de Montaigne, mas que nada diz de si próprio. Quanto as obras propriamente míticas, seu caráter mítico exclui, de princípio, o estabelecimento do significado humano da experiência em favor de outro sentido arraigado no universo mítico que reconstrói: desde Aquiles a falar a Ulisses, a passar pelos mortos de Dante, até o rei Hamlet, ávido de vingança. Frequentemente, ao certo, a morte não é uma experiência reconstruída pela arte, mas uma experiência dada a partir da qual certo sentido é atribuído a experiência dos viventes como o é The Raven de Poe.


"At last the dead man walked no more
Amongst the Trial Men"
Há algo nestes versos que prolonga o significado da experiência final de vida  do condenado. É que não mais andando entre os reclusos, o homem morto está livre. A morte é o limite do sofrimento. Por mais horrenda que seja a imagem do homem morto, este já nada tem a ver com o sofrimento ou seu oposto. Mors omnia solvit. Por isso não é a morte que se abate sobre o condenado o motivo do horror, não é a própria morte a condenação mais terrível senão a espera da morte, a existência, dia após dia, passo após passo em direção ao cadafalso. É a morte como rastro da morte e a condenação como rastro da condenação, que, impregnando a vida aprisionada, a faz um ensaio de morte.


***

12 de outubro de 2010

Efemérides ( IV )

Sabedoria de um herege:

“Cada qual faz o que pode,
Cada um faz o que deve:

O campônio lavra a terra,
E o guerreiro vai á guerra;

As carolas juntam lenha,
Eu, que herege sou,
blasfemo.

O padre prefere o ouro,
Mas o asno prefere o feno.”

Poética X

Há um dilema que todo iniciante em arte poética deve enfrentar se quiser deixar de ser uma amador: ou o poema diz algo por si mesmo ou diz algo de seu autor. O dilema diz respeito a antinomia artificialismo X sentimentalismo. Rilke ressaltou muito bem que a poesia deve ser para o poeta uma necessidade incontornável: se alguém pode viver sem escrever, melhor que assim viva. Somente o que sente a poesia como necessidade será capaz de suportar a glória do sucesso ou a solidão do fracasso com o mesmo estoicismo; para ele, a poesia já é um fim em si mesmo.

Artificialismo e sentimentalismo são as duas vias extremas e exteriores à arte poética autêntica. A primeira é meramente tekné, produção inanimada; a segunda é mera confissão pessoal. “O poeta é um fingidor”, bem disse Pessoa, e é como fingidor e ficcionador que o poeta deve falar de sentimentos. Pois os afetos são o espírito do poético, sem os quais ele não será mais que forma destituída de sentido, mas os afetos, se devem ser obra poética, não pertencem ao poeta senão também ele como obra poética, i.e., como uma ficção. O movimento interior do qual a escrita parece afluir só adquire importância em face do "efeito de superfície" que envolve a própria noção do "estético". E Eliot pode ao certo dizer sobre as emoções que o poeta não procura expressá-las nem construí-las, mas delas fugir: "Poetry is not a turning loose of emotion, but an escape from emotion; it is not the expression of personality, but an escape from personality. But, of course, only those who have personality and emotions know what it means to want to escape from these things".

11 de outubro de 2010

De encontro

Obstinadamente,
De alguma noite,
Procuro os olhos
Que te viram.

Porque tudo é recomeço.
Novo, mesmo e
Sobretudo
O que ser repete,

Meus olhos te procurarão.
Atravessando a noite,
Porsobre as estrelas,
Hão de encontrar os teus
Onde sempre estivemos:

Sísifo somos ou Tântalo,
Porém nos esquecemos

10 de outubro de 2010

Efemérides ( III )

É como deve ser, insisto:
Uma mulher e um marido.

Não cobiçarás a do próximo
Somente a do longínquo.

9 de outubro de 2010

Oscar Wilde - The Ballad Of Reading Gaol ( I )

I


He did not wear his scarlet coat,
For blood and wine are red,
And blood and wine were on his hands
When they found him with the dead,
The poor dead woman whom he loved,
And murdered in her bed.

He walked amongst the Trial Men
In a suit of shabby grey;
A cricket cap was on his head,
And his step seemed light and gay;
But I never saw a man who looked
So wistfully at the day.

I never saw a man who looked
With such a wistful eye
Upon that little tent of blue
Which prisoners call the sky,
And at every drifting cloud that went
With sails of silver by.

I walked, with other souls in pain,
Within another ring,
And was wondering if the man had done
A great or little thing,
When a voice behind me whispered low,
'That fellow's got to swing'.

Dear Christ! the very prison walls
Suddenly seemed to reel,
And the sky above my head became
Like a casque of scorching steel;
And, though I was a soul in pain,
My pain I could not feel.

I only knew what hunted thought
Quickened his step, and why
He looked upon the garish day
With such a wistful eye;
The man had killed the thing he loved,
And so he had to die.

Yet each man kills the thing he loves,
By each let this be heard,
Some do it with a bitter look,
Some with a flattering word,
The coward does it with a kiss,
The brave man with a sword!

Some kill their love when they are young,
And some when they are old;
Some strangle with the hands of Lust,
Some with the hands of Gold:
The kindest use a knife, because
The dead so soon grow cold.

Some love too little, some too long,
Some sell, and others buy;
Some do the deed with many tears,
And some without a sigh:
For each man kills the thing he loves,
Yet each man does not die.

He does not die a death of shame
On a day of dark disgrace,
Nor have a noose about his neck,
Nor a cloth upon his face,
Nor drop feet foremost through the floor
Into an empty space.

He does not sit with silent men
Who watch him night and day;
Who watch him when he tries to weep,
And when he tries to pray;
Who watch him lest himself should rob
The prison of its prey.

He does not wake at dawn to see
Dread figures throng his room,
The shivering Chaplain robed in white,
The Sheriff stern with gloom,
And the Governor all in shiny black,
With the yellow face of Doom.

He does not rise in piteous haste
To put on convict-clothes,
While some coarse-mouthed Doctor gloats,
and notes
Each new and nerve-twitched pose,
Fingering a watch whose little ticks
Are like horrible hammer-blows.

He does not know that sickening thirst
That sands one's throat, before
The hangman with his gardener's gloves
Slips through the padded door,
And binds one with three leathern thongs,
That the throat may thirst no more.

He does not bend his head to hear
The Burial Office read,
Nor, while the terror of his soul
Tells him he is not dead,
Cross his own coffin, as he moves
Into the hideous shed.

He does not stare upon the air
Through a little roof of glass:
He does not pray with lips of clay
For his agony to pass;
Nor feel upon his shuddering cheek
The kiss of Caiaphas.

(Oscar Wilde, 1898)

***

Sobre a Balada de Wilde

I



The Ballad Of Reading Gaol é o mais célebre poema de Oscar Wilde. Nas palavras de Oscar Mendes, “sem dúvida a sua peça poética mais sincera, mais profunda, mais humana, de simplicidade mais emocionante”. Escrito na pequena aldeia de Berneval, em 1897, ano em que Wilde deixa a prisão de Reading, onde cumprira pena devido ao escândalo envolvendo Lorde Alfred Douglas. Wilde morreria pouco depois, em 1900, não sem deixar, com sua obra, um dos mais completos retratos da Era Vitoriana.

A Balada é uma impressão do cárcere, do efeito devastador do aprisionamento sobre o espírito criativo e, assim como Memórias da casa dos mortos de Dostoievski, constrói um retrato singular e ao mesmo universal dos canteiros de barbárie com os quais a civilização orna sua tranquilidade quotidiana.

Da primeira parte nos ficam versos lacônicos que toda a Justiça Humana resumem, não sob juízo de acerto ou desacerto, perfeição ou imperfeição, mas, desde a voz de um outro condenado, na constatação do que é e parece não poder ser de outro modo:

“The man had killed the thing he loved,
And so he had to die.”

Um homem bom aqui deve ver aqui somente a simplicidade da justiça; simplex signum veri: nada mais simples do que isso, que se tenha que pagar uma vida com outra. E, contudo, eis o mérito extra-poético da Balada de Wilde: afora quaisquer dúvidas sobre a culpa, a reparação e a frieza com que um homem é assassinado, não sob o atropelo das paixões, mas metodicamente, a empatia de um condenado para com outro supera em muito a singular situação do aprisionamento. Somente desde essa empatia adquirem valor os versos que se seguem:

“For each man kills the thing he loves,
Yet each man does not die”

Parecerá que, leviano, o poeta não distingue entre a destruição de uma vida, material e espiritual, da metafórica morte de um afeto. Presumo que os leitores familiarizados com os conflitos morais que permeiam a escrita de Wilde se absterão de tal superficialidade. Porque aqui fala não o sofrimento do que perece, mas o sofrimento duas vezes maior daquele que faz perecer algo sumamente valioso para si mesmo. É o mesmo sofrimento de um louco sobre o cadáver de seu deus; sofrimento que não deixa de ser o próprio espírito vitoriano.

O homem assassinara a mulher a quem amava em seu leito

“And blood and wine were on his hands
When they found him with the dead”.

Aqui, o antagonismo fundamental do estranho personagem — vinho e sangue; Eros e Tánatos; esperança e perdição — de dois modos manifesto: o homem matara a quem amava, enquanto ainda a amava e talvez porque a amava – o vinho é o signo do júbilo e do gozo –; o homem matara a quem amava, portanto matara também o seu amor, matara uma parte de si, e em parte já estava morto; o homem matara, era um assassino, um pecador, um condenado e justamente um desses condenados para os quais dizem veio o Cristo – vinho e sangue são esta esperança a qual tentarão lhe retirar.

O sofrimento desse homem não é o do remorso. A réplica de Wilde ao princípio retributivo da justiça humana esclarece que o maior crime desse homem é ter destruído uma parte de si próprio. Sofrimento que supera qualquer outro e do próprio poeta-condenado:

“And, though I was a soul in pain,
My pain I could not feel”

É o sofrimento que envolve e reflete a marcha errante dos homens, sua fraqueza, sua degradação; que revela, porém, a indigência que é a “falta de indigência”, a condenação que é a ausência de condenação, o assassínio cotidiano pela besta humana do homem sem peculiaridades. Porque o homem bom, o bonus pater familiae, é também um indigente e um condenado, mas porque sofre da pior indigência, como o lembra Heidegger, será a mão que acorrenta e aprisiona, que tortura e mata, metodicamente, a fim de que, enforcado após enforcado, possa apagar-se da vista a irmandade que a pretores e réus arrasta no mesmo torvelinho; porque ele, o bom homem,

“He does not die a death of shame
On a day of dark disgrace”

A Justiça Humana parece ser, assim, o que assenta cada qual em seu lugar. O que a cada um retribui, não conforme sua natureza, mas meramente ao ato. O que farão a este homem que matara aquela a quem amava, que já reconciliará crime e castigo no mesmo ato, nada tem a ver com retribuição, justiça ou direito. Dele quererão tirar toda a humanidade, todo traço que assemelhe sua caminhada sombria para o cadafalso ao passeio monótono do bom homem. Longe estará, para o condenado, a própria morte como sofrimento; ao contrário, cada dia seu será de agonia e sofrimento, sepultado vivo numa cela sem esperança de liberdade e vida, até que o que pereça sob o cordão do carrasco não seja mais que a sombra do sofrimento humano.

O destino desse homem, porém, contrasta com a vida que a proximidade do fim faz expandir com mais intensidade. O homem próximo da morte, metodicamente aproximado da morte por aqueles que sonhavam e sonham poder controlar a vida de seus quartos almofadados, é um homem revelado. Seu ser é ser-para-a-morte, não como um conceito vazio da elucubração existencialista, mas como fato: ele caminha para a morte e a morte se apodera de cada traço de sua existência; a cela escura é seu primeiro túmulo; o capelão, o xerife, o diretor, o médico são personificações de seu calvário. E, no entanto, é nele que a vida se manifesta como maior altivez:


Eu nunca homem vi que contemplasse
Com tão embevecido olhar,
Aquela pequenina tenda azul
Que os presos chamam firmamento,
E toda errante nuvem que passava
Com suas velas prateadas.”
***

8 de outubro de 2010

Efemérides ( II )

Naturalmente em seu lugar
Cada cousa se arruma:

O padeiro acorda cedo
Quando dorme o vagabundo.

7 de outubro de 2010

A Celan

Ele escreve à manhã dos girassóis,
Aos campos de trigo e fome, à vinha.
Embriagado, à embriaguez escreve,
À embriaguez do não ainda,
Embriagado de concreto e aço.
Ele escreve à dama da noite,
À noites de paixão não-havidas;
Ávido, escreve e sangra...
Porque alguma dor é o tempo,
Corrente de engano e sono,
E ele, eterno judeu, poeta errante,
Sombra de ópio e absinto.

6 de outubro de 2010

Efemérides ( I )

Há dias em que me falta a voz.
É quando digo a verdade, então:

Helenas colhem pomos;
Dorme tranquilo, o leão.

5 de outubro de 2010

Antes do amanhecer

Antes do amanhecer, teu rosto
Sob a lua, sei-o, é Ísis; outra
Remota lembrança que a vida
Arrasta à terceira margem do rio.

Há, porque nada de todo se perde,
Nalgum rincão afastado do éter,
Das manhãs e entardeceres fenecidos,
A mancha agrisalhada do vertido

Tempo. E a lembrança, querida,
Que reavida flore, é, das sementes
Más que o sono buliçoso vela, arbusto
Espinhado que fere e fende no arcabouço

Noctívago, um canteiro arcaico de verso
Entre ruínas toantes, onde virão dançar
Os sátiros e embriagar-se as bacantes,
Ao certo, pouco aquém do amanhecer.

4 de outubro de 2010

Escravos

Somos escravos e nosso tempo é curto,
Nossas mãos, braços, pés, pernas — curtos:
Quão alto e longo, porém, o muro!

Somos escravos e nossas correntes leves,
Tão leves que não as percebemos mais.
Nascidos que somos de vencidos pais.

Somos servos de um senhor indígno,
Nossas correntes do ferro invisível,
Da matéria invisível dos sonhos.

Somos sombras de um sonho triste
Sonhado à tarde por um menino
Cujos pais desertaram da vida.

3 de outubro de 2010

A Camões

À noite, quando penso nas musas
Que nos deixaram, ou nas lusas
Travessias, além d’África.
É teu canto à cabeceira, Camões,
O vestígio do mundo arcano,
Inacessável. À noite, sobre o Tejo,

Quando do verso parte a melodia,
Quando a sílaba cadente grita:
“Nem senhor, nem mestre!”

À tarde quando, esquecido, enrrubesce
Urano e o metal do campanário aquieta,
Em Brasília, o rebuliço da turba,
É teu canto, Luís, esta estante suja,
Empoeirada e coberta de aranhas;
É o silêncio quando a tarde morre,

Quando do verso parte a melodia.
É quando a sílaba cadente grita:
“Nem senhor, nem mestre!”

2 de outubro de 2010

Ariana

Ariana,
Se as revoluções do astro
Oblíquo cuja espiral arrasta
A dança dos ciganos,
                                     Armas de um lunático
                                                                           E a solidão de um camponês exausto
O permitissem,

Àquele outono tornaria,
                                         Ao verso, ao braço, ao berço
Da lembrança,
                        Ao lábio:
                                       De um sempre desassossego.

E quem não seríamos, Ariana?
Esquecidos e errantes; Amigos
Das manhãs e do pôr-do-sol.

Ariana...
               Ariana...
                             Ariana...

Se a terceira margem
Do rio era o leito; sua água
Reflexo dos olhos de Orfeu;
Era lembrança, o teu nome,
E canção de despedida.

Ariana,
Se o rastro da espiral oblíqua
Do astro obstinado que arrasta,
A dança de um lunático,
                                         A fúria do camponês exausto,
                                                                                           E a solidão de um cigano

Errando através dum reino
Estrangeiro, lembrasse a estória
Dos encontros e desencontros;
Ali, descendo a carruagem negra,
Virias chamar meu nome
E eu:

Ariana...
              Ariana...
                            Ariana...

1 de outubro de 2010

Canção de adeus

Se um dia o tempo, pretor dos famintos,
Pousar sobre a vista turva que os dias
Cinzas de outono ou a derradeira chuva
Do verão encobre, corra até o jardim.
A lua estará como a deixamos: muda;