/> Πρωτεύς: Pedro Kilkerry

26 de outubro de 2010

Pedro Kilkerry

É o Silêncio...

É o silêncio, é o cigarro e a vela acesa.
Olha-me a estante em cada livro que olha. 
E a luz nalgum volume sobre a mesa...
Mas o sangue da luz em cada folha.

Não sei se é mesmo a minha mão que molha
A pena, ou mesmo o instinto que a tem presa. 
Penso um presente, num passado.  E enfolha
A natureza tua natureza.
Mas é um bulir das cousas... Comovido
Pego da pena, iludo-me que traço
A ilusão de um sentido e outro sentido.
Tão longe vai!
Tão longe se aveluda esse teu passo,
Asa que o ouvido anima...
E a câmara muda.  E a sala muda, muda...
Àfonamente rufa.  A asa da rima
Paira-me no ar.  Quedo-me como um Buda
Novo, um fantasma ao som que se aproxima.
Cresce-me a estante como quem sacuda
Um pesadelo de papéis acima...
.......................................................................................

E abro a janela. Ainda a lua esfia
últimas notas trêmulas... O dia
Tarde florescerá pela montanha.

E ó minha amada, o sentimento é cego...
Vês?  Colaboram na saudade a aranha,
Patas de um gato e as asas de um morcego.

***

É dos simbolistas brasileiros, aquele em cuja sintaxe complexa e vigorosa imagética melhor desenha o sentido da poética moderna em oposição à poética arcaica, Pedro Kilkerry, o quase esquecido nômade. Seja a morte, o espalhamento de sua obra ou o descaso que aos astros mais brilhantes condena a um rastro póstumo, a razão pela qual houve de ser necessário esperar até os Campos para que pudéssemos reencontrar a poesia de Kilkerry, já não há de pairar dúvida entre os que reconhecem a diferença entre o gênio inovador e o competente operário das vanguardas, que “maior de nossos simbolista” é, irrisório que sejam os títulos, a mínima declaração sobre Kilkerry. Não que a poética do “Dante Negro” deva ser relegada a segundo plano, mas que o resgate de Kilkerry altera consideravelmente a face do nosso desenvolvimento poético. E quão, hoje, nos parece inevitável – porque o gênio é exatamente o inevitável – sua obra! Quão incompreensível e empobrecido pareceria o percurso poético brasileiro sem essa poética fundadora e mantenedora de tudo o quanto merece ser chamado “poesia”. Porque, entre a plenitude de sentido do arcaico que hoje nos escapa e a necessidade de renovações constantes da forma, do jogo sintático em que a poesia toma a si como objeto, está a poética do encontro: do arcaico e do moderno; do sentido fenomênico e do “outro sentido”.
É o silêncio é das mais emblemáticas peças poéticas de Kilkerry, nela comparecendo todos os elementos que nos permitem conceber a posição singular do poeta no panteão de nossas letras. Para os que acreditam, como Heidegger e este próprio que escreve, na proeminência dos poetas em matéria ontológica, É o silêncio é obra das mais caras em nossa difícil língua, quer pela sintaxe que a marca com o signo indelével da vanguarda, quer pelo pulular de sentido que a finca no restrito espaço da arte fundamental, quer ainda pela melodiosa concatenação de tons e imagens que a torna não menos aprazível aos ouvidos que perturbadora à consciência.

É o silêncio, é o cigarro e a vela acesa”

Que dizer, prima facie, desse verso, dessa construção, senão que desafia a ordinária capacidade mental de realocação sintática em favor do mais simplório e persiste por fustigante enigma? O que perturba nessa construção é o verbo, o corriqueiro e buliçoso verbo “ser”. Somente a passear pelas trilhas que conduzem ao “lugar do ser”, desenha-se o aberto do sentido, que é do sentido e do “outro sentido” o descampado hábito.
O silencio, o cigarro, a vela acesa — diz o verso que são, i.e., que há silêncio, que há cigarro, que há a vela acesa. Ao dizer isso, o verbo nada atribui aos entes que predica, pois “existência não é um predicado válido”. D’outro modo, firma a presença do que está presente e a ausência do que está ausente – pois o silêncio é a ausência de tons e o cigarro é a espera do que não chegou –; não vige aqui a força plasmática da metáfora, pois nada diz o verso do que é que algo seja e á pergunta “o que é?” nada responde: é o lugar vazio da substância desenhado pelo arranjo livre dos predicativos. Ao dizer o que efetivamente diz, o verso arruína a função atributiva do verbo-cópula em favor da expressão eventual do verbo-ação – e ação-acontecimento. 

Olha-me a estante em cada livro que olha. 
E a luz nalgum volume sobre a mesa...
Mas o sangue da luz em cada folha.

O acontecimento é o das coisas, do espaço e do tempo, mas cujo sentido remete ao que está ausente da experiência. O acontecimento é acontecimento do sentido, então, aqui, acontecimento da ausência. Há um lugar vazio, o todo espaço vazio, donde a relação do eu-lírico com as coisas e das coisas com elas mesmas, retira seu vigor. A própria elipse, nevrura da sintaxe de Kilkerry, encontra nesse vazio a relação originária de poiesis: é por ele criado enquanto o cria, o produz para o poema; não o expressa, é verdade; a construção eliptíca é o que deixa vigorar o pulular de sentidos da objetidade. A luz sangra sobre cada folha de um volume sobre a mesa; faz, do que se espera da luz o contrário, mancha o que deveria clarear; não é lux, signo etéreo de revelação, mas lumen, substância misteriosa que derrama dos olhos ou das próprias cousas vige e alcança o olhar; o olhar, então, é o fluxo inconstante que desenha a presença do que se apresenta, que traz ao encontro a buliçosa estante; o fluído é sangue, seiva, é a natureza liquefeita do visado.

Não sei se é mesmo a minha mão que molha
A pena, ou mesmo o instinto que a tem presa,
Penso um presente, num passado. E enfolha
A natureza tua natureza...

A natureza do que está ausente faz florescer e crescer desde si mesma a natureza das coisas, de tudo o que cirncunda o eu-lírico. Este, não é nucleo soberano de sentido, mas visão turva que ao visado persegue e recolhe desde o lugar nebuloso do impensado. Se aqui o poeta descreve a gênese de sua escrita, o que ela revela é o indeterminado da criação: não é na consciência estética do poeta que o arranjo significativo dos versos hão de produzir seu sentido, mas é da sempre obscura ilusão do sentido que o poeta fala:

Mas é um bulir das cousas... Comovido
Pego da pena, iludo-me que traço
A ilusão de um sentido e outro sentido.

Tão longe vai!
Tão longe se aveluda esse teu passo,





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