Otelo é a tragédia da paixão, mas não é uma estória simples como muitos pensam e, principalmente, não é uma mera estorieda de ciúmes. Otelo coloca em questão um modo de amar a que se chama “paixão” — sofrimento de..., sofrimento por..., sofrimento para... — tão complexo sentimento quanto o próprio amor. Vê-se bem que são três modos distintos de um afeto (paixão) e, este mesmo, um tipo particular do que se pode chamar, para evitar ambiguidades homonímia, um “sentimento” (amor).
Benjamim Espósito (Ricardo Darín), Ricardo Morales (Pablo Rago) e Isidoro Goméz (Javier Godinho) são, em El secreto de sus Ojos, três dimensões desse afeto, três máscaras de Otelo.
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El secreto de sus Ojos, filme argentino vencedor do Oscar 2010, traz um enredo que oscila entre a narrativa policial e o drama shakespereano. É a estória de um policial que, por razões só lentamente se revelam na trama, resolve escrever um romance baseado no “caso Morales”, a investigação sobre o estupro e assassinato de uma jovem professora.
O filme de Juan José Campanella tem méritos e deméritos técnicos ressaltados pela crítica (a fotografia entre os primeiros e a maquiagem entre os segundos), mas não é isso que me interessa. Ao assisti-lo, é a construção dos três principais personagens masculinos o elemento de minha reflexão, o fato de que cada um deles ao seu modo constrói uma relação amoroso fundada no sofrimento e na degradação: Gómez (o estuprador e assassino), Morales (o marido) e Espósito (o investigador do caso). Os três personagens são linhas que se cruzam (encontro emblematicamente concretizado na resolução do caso 25 anos depois de ocorrido), mas que, se se cruzam, é porque estão em dimensões diferentes.
Os olhos são o espaço desse encontro: olhar de Espósito que ele reconhece em Gómez; olhar de Gómez que o denuncia a Hastings (Soledad Villamil); olhar de Morales que renega suas palavras. O olhar é sempre aí uma confissão, a confissão de um sofrimento, que não chega às palavras: palavras da convadia de Espósito, da brutalidade de Gómez, do destemor de Morales. Enquanto as palavras sempre tardam a sustentar a verdade, os olhos já a mostram desde o princípio — são “as janelas da alma”, donde se vislubra a luz do amor puro ou as trevas do sofrimento mais extremo.
Se nos perguntarmos agora o porquê das atitudes tão díspares dos personagens — brutalidade, covardia e destemor — encontramos a mesma raíz: é o que se chama “paixão”. Este “fio de Ariana” só pode ser vislumbrado claramente porque um quarto personagem, assumindo-o, se faz elo entre os outros três: é Pablo Sandoval (Guillermo Francella), parceiro de Espósito.
Disse que o sofrimento que a paixão envolve é “sofrimento de...”; este se manifesta ora como “sofrimento por...” ora como “sofrimento para...”, ora puramente. Sua forma pura, a mais rara, é de todas a menos suportável. É o sofrimento de Morales quando a memória o confunde e, contra a sua vontade, começa a esvanecer-se a concretude de seu amor; é o sofrimento do nada, de “uma vida cheia de nada”, na expressão de Espósito. À sua questão: “como viver uma vida cheia de nada?”, a resposta é clara e é o que o permite sobrepujar a mentira de Morales: não se pode, isso não é possível. Uma forma de sofrimento deve transforma-se em outra; o “sofrimento para...” em “sofrimento por...”; o “sofrimento de...”, puro e vazio, preenchido com uma dessas formas. Este câmbio é a chave da economia do drama, é o que torna possível a sobrevivência e o reencontro dos três personagens.
Para compreender isso precisamos atentar para o modo como a paixão se manifesta de início nos três personagens e em que se transforma:
Gómez ama Liliana Coloto (Carla Quevedo); ama-a desde a infância; ama-a com admiração e devoção. Ele sofre por ela, por não a possuir ou não a possuir mais: seu amor é a princípio amor-tributo como o de Espósito por Irene. Mas o que ele precisa não é tanto possuí-la, mas destruir o objeto de sua paixão, o fundamento de seu sofrimento. O estrupro e assassínio têm, portanto, esse duplo significado: é a consumação brutal do amor e a destruição do objeto amado, a libertação do sofrimento. Se Gómez assassina brutalmente aquela que ama é porque não pode conviver com o sofrimento; é fraco demais, degenerado demais para suportar a dor da convivência com o objeto inalcançável de sua devoção.
A punição de Gómez tem, a refletir nessa linha, uma dimensão impensável. Morales há de lhe recusar o prêmio de seu crime: ao invés de fazer extinguir o sofrimento do amor-tributo pelo perecimento de seu objeto, seu crime resultará, por força de Morales, na trasformação desse sofrimento em outro: “sofrimento por...”. Mesmo reconhecendo para si o vazio como algo insuportável, Morales saberá reconhecer em Gómez alguém que desejava o vazio – e é isso que, ao lhe recursar, será o cerne de sua vingança: a brutal violação de seu espírito, de sua humanidade, sua redução à condição de animal encarcerado, entregue ao silêncio e ao puro transcorrer do tempo. “Voce disse prisão perpétua” – explica Morales à Espósito; mas o castigo imposto a Gómez é bem mais que uma prisão perpétua e seria difícil mesmo a uma mente engenhosa imaginar algo pior.
Morales é o antípoda de Gómez. O desaparecimento do objeto de devoção o ameça com a extinção de seu sofrimento, com o esquecimento e o vazio. Ele sabe que não poderá suportar o vazio. Por outro lado, é forte o suficiente para suportar o sofrimento, desde que o sofrimento preencha o lugar vazio deixado pelo perecimento do objeto-amado. Daí que a vingança, e mais propriamente uma vingança perpétua, constitua para ele o único modo de vida possível. Ao punir Gómez, Morales conserva seu amor e seu sofrimento; faz padecer sua vida em tributo ao amor perdido e, fazendo sofrer Gómez por Liliane, assegura que o tempo não passará para eles; que o tempo para os dois será mero prolongamento do crime e do castigo, do amor e do sofrimento.
Um comentário :
Lindo "o olhar como confissão"...
a "confissão como sofrimento"...
dentre tantas outras coisas incríveis que nos traz...EXCELENTE TEXTO!
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