/> Πρωτεύς: Oscar Wilde – The Ballad of Reading Goal (IV)

23 de janeiro de 2012

Oscar Wilde – The Ballad of Reading Goal (IV)

O. Wilde
“Na capela função não há no dia
Em que se enforca um condenado”

A partir daqui, finda a Justiça Humana, a Balada adquire cada vez mais uma tonalidade religiosa e católica – o próprio Wilde se converterá ao catolicismo em seu leito de morte – malgrado os visíveis traços de dúvida do autor quanto à Religião. O eu poético talvez nisso se antecipe ao autor que, ainda no cárcere, manifesta sua falta de fé na carta que dirigiu a Lord Douglas:

“A religião tampouco me serve de consolo. A fé que os outros têm no invisível, tenho-a eu posta no visível e em tudo aquilo que se pode tocar. Meus deuses habitam templos construídos com as mãos, e dentro do círculo de minha atual existência, meu credo é perfeito e completo, talvez demasiado completo, porque, da mesma maneira que outros que situaram seu paraíso na terra, encontrei nele não só a beleza do paraíso, mas também o horror do inferno. Quando penso na religião, sinto o desejo de fundar uma ordem para aqueles que não podem crer; a confraria dos incrédulos poderíamos chama-la, na qual, diante de um altar em que não ardesse nenhum círio, um sacerdote de coração atormentado celebrasse a missa com a hóstia sem consagrar e o cálice sem vinho. Cada coisa para ser verdadeira deve tornar-se uma religião e o agnosticismo deve ter seus ritos da mesma maneira que os tem a fé. Semeou seus mártires e deve ter a colheita de seus santos e louvar a Deus todos os dias por não ser ter mostrado ao homem. Não quero manifestações externas, nem da fé, nem do agnosticismo. Seus símbolos hei de cria-los eu mesmo, porque somente o espiritual pode adquirir forma. Se não encontrar seu segredo dentro de mim mesmo, não poderei encontra-lo nunca; se não o tenho, terei de renunciar a ele para sempre.” [De profundis; Epistola in carcere et vinculis. In: obras Completas, p. 1391)

Seja como for, a Igreja é representada de modo ambíguo, ora pela contrição do capelão nos versos seguintes do mesmo estrofe, ora pelo abandono da cova do pecador, traição da missão que lhe foi confiada:

“Não rezará ajoelhado o padre
Naquela cova desonrada,
Nem marca-la-á com a cruz bendita
Que Cristo deu aos pecadores,
Porque o condenado era um daqueles
A quem Jesus veio salvar.”

O sentido profundo dessa quarta parte da Balada é a de que somente os olhos de Cristo alcançaram o condenado, que por ele pode alcançar a redenção que lhe foi negada pela Justiça dos homens.

Os condenados, que ao meio-dia deixam “seu inferno solitário”, ocupam agora o lugar vazio do morto:

“Nunca homens tristes vi que contemplassem
Com tanta ânsia a luz do dia.

Nunca homens triste vi que contemplassem
Com tão embevecido olhar,
Aquela pequenina tenda azul
Que os presos chamam firmamento.
E as descuidosas nuvens que passavam,
Em liberdade tão feliz”

Seguem-se, em minha opinião, os mais enigmáticos versos desse poema:

“Mas entre todos nós havia aqueles
Que caminhavam cabisbaixos
E sabiam que a morte mereciam
Se pagar fossem seus pecados
Ele matara apenas um ser vivo,
Eles tinham matado o morto.

Pois quem peca segunda vez, acorda
Uma alma morta para a dor,
Tira-a de seu sudário maculado,
Fazendo-a de novo sangrar,
E a faz sangrar grandes gotas de sangue
E a faz sangrar inutilmente.”

Está certo que Wilde fala de alguns dos presos, ele diz “nós” e que “matar o morto” significa pecar uma segunda vez. Mas não é claro, de fato, o que esse segundo pecado e como ele pode suplantar em muito o crime do enforcado. Poder-se-ia dizer que o verdadeiro crime é não se arrepender das faltas passadas e repete-las, mas a contrição que os força a caminhar de cabeça baixa revela a culpa que carregam por um crime maior. Acordar uma alma morta e fazê-la sangrar inutilmente – mas que pode significar isso? Fugirei a temeridade de dizer qual coisa significam, deixando à meditação mais longa ou a solicitude de algum melhor leitor. Avante.


***


Os condenados caminham e silêncio, uns admiram a liberdade das nuvens livres, outros deixam-se vergar pelo peso de suas dívidas. Os guardas, estes vestem seu melhor uniforme, roupas limpas como sinal de sua inocência.

“Mas descobrimos o que haviam feito,
Pela cal viva em suas botas.”

Aqui uma inversão fundamental: são agora os guardas acusados pelo olhar dos presos. Ao assassínio, justo ou injusto, do criminoso, se segue outro crime: o abandono e a negação da memória e da esperança. Cobriram-lhe de cal para ardente para extinguir, do que restou de um homem, os últimos vestígios:

“E todo o tempo a cal ardente come,
A carne e os ossos seus devora,
Como de noite os ossos quebradiços
De dia come a carne mole,
Por turno vai comendo a carne e os ossos,
Mas sem cessar o coração”

M. Foucault
O Por fim, completa-se a punição desgraçado com a infâmia de seu túmulo, sobre o qual não deixaram nada crescer por três anos. Recusam lhe a rosa, a oração e a cruz. O máximo da punição que incide sobre o corpo se dá na destruição completa do corpo do condenado, como nos tempos do suplício quando o Soberano fazia reduzir ao nada aquele que lhe feriu o “corpo político”. A punição não se encerra com a morte. É preciso ainda que a Justiça persiga o morto, reduzindo-lhe à infâmia.

“[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dia carroça, na Praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumido ao fogo, reduzido a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento.” [Do processo de Robert-FrançoiesDamiens, apud Foucault, Vigiar e Punir, 2009, p. 9]

E assim aconteceu:


“... Em cumprimento da sentença, tudo foi reduzido a cinzas. O último pedaço s brasas só acabou de se consumir às dez e meia da noite. Os pedaços de carne e o tronco permaneceram cerca de quatro horas ardendo.” [In: Zevares, apud Foucault, 2009, 11]


A pergunta a ser feita é: fazemos melhor do que isso? Se por melhor entendemos algo menos ofensivo aos nossos olhos e estômagos frágeis, eis que tudo melhorou consideravelmente. Ao tempo de Wilde, em que se ainda enforcavam os culpados, as atrocidades das fogueiras e dos suplícios há muito já haviam desaparecido da velha Europa. Restou a forca e a prisão. Mas a prisão já era o centro do sistema punitivo. O poema de Wilde não é sobre a forca e legitimidade da pena capital, mas sobre a atrocidade própria da prisão, o sepulcro dos vivos. O corpo que arde sob a terra, devorado noite e dia, é o análogo perfeito dos corpos encerrados entre os muros, que a expressão popular “apodrecer na prisão” bem representa.

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