“De dura pedra é o pátio dos Que Devem
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E altos os muros reçumantes;”
A composição de Wilde, se a quisermos tomar como um manifesto ou algo mais que uma experiência puramente subjetiva, não há de ser um manifesto sobre a injustiça. Talvez por isso mesmo devamos evitar considerá-la de modo tão grosseiro, como simples poetização do horror do cárcere ao qual Wilde foi lançado por razões que hoje nos parecem inconcebíveis. O cárcere não é um lugar de inocência. A sorte pesada de cada condenado vem carregar-ser de suas culpas, inda que inconfessáveis, de modo a que a extrema tortura de um não é senão o reflexo da incerta tortura de todos,
“Pois ninguém sabe a que vermelho inferno
Sua alma cega possa ir ter.”
São culpados todos os detentos; são “loucos, falsos, vadios”; são efetivamente “os que devem”, criaturas assombradas de culpa e remorso. Que isso não corresponda, como bem observou Nietzsche certa vez, ao que passa nos espíritos dos reais prisioneiros não é coisa de se surpreender. O poeta é um artista e sua escrita, arte. A arte pertence, como já concebia Aristóteles, ao universo dos mundos possíveis, não intentando ser o retrato fiel deste mundo e do que nele se passa. Dos possíveis o poeta escolhe os arquétipos que considera mais adequados esteticamente (o que muito varia de tempos em tempos). Poderia Wilde ter escolhido qualquer outra imagem do delinquente: criminoso-herói, revolucionário, injustiçado, puro. Quem não conhece aquela novela de Tolstói, Deus vê, mas espera, cujo personagem é quase um Cristo em meio aos corrompidos homens? Wilde faz uma escolha e sua escolha aqui recai sobre um tema clássico mais ou menos como os pintores antes de Coubert escolhiam entre o pintável e o não pintável.
Suponho que a escolha de Wilde por criminosos culpados se deva a uma série de razões muito bem justificáveis: a ambiguidade própria aos culpados confessos que os coloca no limiar entre a danação e a promessa redentora; reposicionamento do foco da obra, que não mira ao conflito moral, mas à relação entre o indivíduo e o cárcere independentemente das razões que o fizeram estar ali.
De todo modo, a Balada de Wilde é antes uma figuração do cárcere do que de seus habitantes. A imagem poética do cárcere é construída ora por evocações do cotidiano dos homens, ora por conjurações do abismo que é este outro mundo além da fronteira da morte. O cárcere é o purgatório onde a luz e as trevas disputam as almas na grande distribuição dos vivos e dos mortos.
“E os espíritos maus que andam de noite
Dançar em frente pareciam.”
De modo a que é incerto a que mundo pertencem os condenados e antes que o destino possa a cada um dar um justo fim, permanecem eles nesse lugar tão familiar aos vivos quanto aos mortos. Tal é, para os que não veem na prisão uma punição suficiente, a tortura que dia e noite os acompanha enquanto vagam como mortos insepultos, pois como já cantava Dante:
“O pior dos suplícios é sentir-se
morto sem acabar de morrer;
É sentir-se vivo estando morto;
E ansiando morrer continuar vivendo”
Ou Rilke ainda:
“Tod ist, wenn einer lebt und es nicht weiss
Tod ist, wenn einer gar nicht sterben känn[1]“
Nesse caso, mesmo o condenado a morte, e sobretudo ele, deve ser vigiado para que não tire sua própria vida, para que não decida o que cabe a um poder superior decidir:
“A seu lado dois guardas vigiavam
Para que morte não se desse.
Ou se sentava com os que expiavam
A sua angústia noite e dia;
Vigiando-o quando ia ele chorar
E para rezar se inclinava;
Espiando-o com medo que roubasse
De sua presa o cadafalso”
Tal é a condenação daquele que matou a quem amava, permanecer por ora quase vivo e quase morto, sofrer os infortúnios deste e do outro mundo, pois o outro mundo é apenas a outra metade do cárcere de onde os espectros, sombras de sombras, são conjurados:
“Passar as vimos com caneta e momos
Quais frágeis sombras de mãos dadas,
Em tropel fantasmal rodopiando”
Por isso a prisão é este lugar não inteiramente natural, não completamente metafísico; mas lugar onde se firma a convivência e a conveniência entre os vivos e os mortos, entre os corpos condenados e os espectros amaldiçoados. Se a prisão é um túmulo, cidade dos mortos ou pequena Judeca, iluminada somente pela esperança vã de ressurreição, é justo que ali venham a conviver os perpetuamente mortos com os que se querem temporariamente mortos, os perpetuamente condenados com os que aguardam expiação. Ao fim a prisão é mesmo um limbo entre dois mundos, onde as sombras descarnadas vêm reivindicar seus corpos e os corpos condenados, dos que já perderam o próprio mundo, esperam, por isso mesmo, reconquistar suas almas.
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